terça-feira, 25 de novembro de 2008

PROVOCANDO O REDEMUINHO

Iná Camargo Costa*


Apagaram-se as luzes: é o tempo sôfrego
que principia. É preciso cantar como se alguém
soubesse como cantar.
Herberto Helder, As musas cegas, II


1. Notícias do Front

Quando dizemos que o capitalismo não tem mais nada a oferecer à humanidade a não ser mais barbárie, os imersos na névoa por ela produzida tratam de afirmar que não há saída, sem saber que deste modo aderem acriticamente à tese dos beneficiários do sistema (para não adiantar nada a respeito de adesões ainda mais profundas). É para estes que reproduzimos algumas informações recém publicadas em veículos alternativos como o jornal Brasil de Fato e a revista Caros Amigos.

De 2000 a 2004, a indústria bélica norte-americana teve um crescimento de 60%; ela movimenta cerca de US$ 100 bilhões por ano em projetos de infra-estrutura, assistência técnica, consultoria, treinamento, planejamento estratégico, análise operacional, logística e serviços de segurança, vigilância e informação. Os Estados Unidos mantêm oficialmente 725 bases militares (as secretas obviamente não são computadas) em todos os continentes, salvo o antártico. Há cerca de 500 mil soldados, espiões, técnicos, professores e assessores a serviço do Pentágono e da CIA trabalhando para os Estados Unidos em outros países (Brasil de Fato).

Em artigo da edição de janeiro de 2007 da revista Caros Amigos, muito a propósito intitulado “Fragmentos da barbárie”, José Arbex Jr. apresenta o seguinte balanço deste início de século XXI: “A paisagem, em regiões inteiras do planeta, assemelha-se aos escombros deixados pelo monstro nazista no momento de seu colapso: 600 mil mortos no Iraque apenas nos últimos três anos; crianças e mulheres palestinas diariamente assassinadas por tropas israelenses; um bilhão de famintos e desnutridos nos continentes do sul; bolsões de miséria nos subúrbios de Paris e das grandes metrópoles do capitalismo; populações pobres abandonadas à própria sorte em Nova Orleans e outras áreas dos Estados Unidos; encolhimento demográfico acelerado na Rússia por fome e alcoolismo; milhões de camponeses expulsos de suas terras pela ditadura supostamente comunista na China, por demanda de transnacionais; aumento vertiginoso, em todo o mundo, da criminalidade, da corrupção e do número de bandos armados; [...] Em Londres, câmeras de vigilância foram instaladas à média de uma para cada 14 habitantes”.

Já que mencionamos a Inglaterra que tanto contribuiu para a consolidação e expansão a ferro e fogo do sistema capitalista, passemos um rápido olhar pela França. Naquela que um dia foi a pátria da “liberdade, igualdade e fraternidade”, de 2002 a 2006 foram aprovadas nove leis sobre delinquência e um novo projeto tramita no poder legislativo. Trata-se agora de uma lei de “prevenção à delinquência” que, entre outros primores humanitários, reduz a maioridade penal para 16 anos, prevê a violação do segredo profissional de psiquiatras, educadores e assistentes sociais, além de sanções administrativas às famílias de crianças e adolescentes em “dificuldades” (Brasil de Fato). São providências para nenhum panóptico foucaultiano botar defeito!

Por certo não é aleatória a escolha das três maiores referências do capitalismo no ocidente (Estados Unidos, Inglaterra e França) para ilustrar os avanços da barbárie neste começo de século. Além destes países constituírem o núcleo principal dos aliados vitoriosos nas duas últimas guerras (a Segunda Mundial e a Fria), são sempre eles os modelos de quem pensa em sociedades que “deram certo” e as referências econômicas, sociais e culturais de quem fala em “primeiro mundo”. Enquanto isso, o assunto do dia em Pindorama desde maio de 2006 é a necessidade de acionar as forças especiais do exército (criadas no governo Lula em 2003) para dar combate ao “crime organizado” que já passou a desafiar o próprio Estado, demonstrando cabalmente à população desvalida que por estas bandas segurança também é privilégio.

Tais informações confirmam a tese enunciada há mais de 15 anos por Robert Kurz no livro O colapso da modernização. Ali, esta verdadeira Cassandra do século XX avisava que países como o nosso (assim como o continente africano e o leste europeu) já tinham sido vitimados pela catástrofe do esgotamento do sistema capitalista e que as próximas vítimas seriam os grandes centros ocidentais. Até mesmo esquerdistas reagiram com incredulidade às suas “previsões”, afirmando inclusive que se tratava de excesso de pessimismo. Por isso vale a pena passar-lhe a palavra para que se observe o grau do acerto: “é muito provável que o mundo burguês do dinheiro total e da mercadoria moderna [...] entre já antes de terminar o século XX numa era das trevas, do caos e da decadência das estruturas sociais, tal como jamais existiu na história do mundo. O caráter singular deste desastre da modernização, que só por último atingirá seu causador, o Ocidente, consiste, por um lado, em sua dimensão social mundial e, por outro, na enorme dinâmica deste sistema. Ninguém pode prever a duração desta maior época de crise da história, nem as formas que percorrerá.”

É possível entender o argumento básico, de extração marxista, do livro, mesmo sem dispor das noções básicas de crítica da economia política: como o sistema capitalista só se desenvolve à base da exploração da força de trabalho, ele entra em declínio a partir do momento em que deixa de ser capaz de fazê-lo na escala exigida por seu próprio desenvolvimento (e isto vem acontecendo desde a última revolução tecnológica, responsável pelo fenômeno que economistas e sociólogos chamam de “desemprego estrutural”, cujo desdobramento mais evidente e assustador é o crime organizado). Sendo mundial o sistema, os sinais da catástrofe surgem primeiro na periferia para depois atingir o centro. O desfecho dessa crise, com sorte, pode ser a superação do próprio sistema mas, enquanto isso não acontece, vive-se num tempo de barbárie, no qual os pindorameses ingressamos há tempos e os países centrais oficialmente neste século XXI que, por isso mesmo, promete tempos interessantes (como dizem os chineses quando desejam mal a alguém).



2. Caracterização da barbárie

Com o movimento Arte contra a Barbárie, organizado em fins dos anos 90, como um sismógrafo, o teatro paulista deu sinal de que os escombros da catástrofe começavam a atingir até os setores sociais tradicionalmente mais preservados da sociedade brasileira. E pensadores inspirados nas análises de Kurz começaram a se dedicar com regularidade ao tema. Assim é que Marildo Menegat desenvolveu sua tese de doutorado, Depois do fim do mundo, em função dele e em 2006 publicou um conjunto de ensaios com o título O olho da barbárie para não deixar margem a dúvidas sobre qual é seu interesse. Neste último se encontra a oportuna observação de que, enquanto na primeira metade dos anos 90 era tido como esquisitice falar em barbárie, “hoje, quando o último acontecimento acaba de ultrapassar a destrutividade do penúltimo e já prenuncia o próximo, tal tema chega a adquirir contornos de obviedade.”

Recorrendo aos clássicos como Rosa Luxemburg, que se valeu do conceito de barbárie para entender a primeira guerra mundial e a Marx e Engels, que em mais de uma oportunidade definiram barbárie como o “anacronismo das relações sociais diante do desenvolvimento das forças produtivas” e como “epidemia de superprodução que leva à destruição de parte das forças produtivas”, o professor Menegat reconstitui, também na esteira do Robert Kurz do Manifesto contra o trabalho, o processo no qual o próprio trabalho (abstrato: aquele que só realizamos para fins de remuneração, para podermos pagar as contas) foi transformado em força produtiva arcaica e em vias de superação, cumprindo, aliás, a previsão de Marx de que um dia os seres humanos não mais seriam necessários como força produtiva. Isto porque “a sociabilidade articulada em torno da valoração do capital exclui milhões de indivíduos da sua lógica social” . É este o aspecto essencial da barbárie que nos interessa e nos atinge, pois fazemos parte destes excluídos (em seguida voltaremos a este ponto).

Em vista do fenômeno da exclusão de milhões da simples possibilidade de exercer qualquer tipo de trabalho remunerado ou, o que é a mesma coisa, de vender a sua força de trabalho, cabe, por exemplo, repor na ordem do dia um clássico da literatura socialista como O direito à preguiça, de Paul Lafargue. Nesta obra, escrita num momento em que os trabalhadores lutavam pela redução da jornada de trabalho para 8 horas, o médico Lafargue, avisando que o trabalho e sua moral ascética produzem almas aprisionadas e corpos fracos e corrompidos, recomendava que, assim como acontece com outras mercadorias em períodos de extrema escassez, o trabalho fosse racionado, de modo a ser distribuído equitativamente para todos e, assim, todos pudessem em seu dia-a-dia “entregar-se a um tempo de realização desta bela obra que é viver a vida entre homens livres e associados” . Como militante do partido socialista, ele sabia que este racionamento do pouco trabalho disponível não aconteceria por iniciativa dos beneficiários da super-exploração dos empregados, mas como resultado de muita luta envolvendo tanto os empregados como os desempregados.

Com Paul Lafargue introduzimos este outro aspecto da barbárie, que é tema da literatura de esquerda desde o século XIX: como o segredo do capitalismo é a exploração da força de trabalho, não importa o nível que o desenvolvimento das forças produtivas alcance, seus benefícios jamais se universalizam. Sobretudo é sempre negado aos trabalhadores o principal benefício, que é o direito ao ócio (e faz parte da barbárie corrente o ataque sistemático ao direito à aposentadoria). No Brasil, os modernistas Mário e Oswald de Andrade também se dedicaram ao tema. O primeiro criou Macunaíma, cujo bordão era exatamente “ai, que preguiça!” e dispensa comentários. E o segundo, na tese que apresentou em 1950 ao concurso para a Faculdade de Filosofia da USP, “A crise da filosofia messiânica”, também ecoa Paul Lafargue ao afirmar que “o homem aceita o trabalho para conquistar o ócio [...]. Hoje, quando atingimos a era em que [...] os fusos trabalham sozinhos, o homem deixa a sua condição de escravo e penetra de novo no limiar da Idade do Ócio. [...] Todas as técnicas sociais reduzem o trabalho [...] É a partilha do ócio a que todo homem tem direito. E o ideal comum passa a ser a aposentadoria, que é a metafísica do ócio” . Mas não custa lembrar que estes dois autores escreviam sob a forte inspiração otimista que marcou os modernismos em geral. Como eles também foram derrotados pela barbárie, uma das tarefas dos que decidimos olhar para ela de frente é incluí-los no jardim das nossas musas: interessa tanto aprender com a preguiça de Macunaíma quanto com a revalorização do ócio presente nas utopias antropofágicas de Oswald para que, como ele disse, todos, livres dos horrores do trabalho abstrato, possam se dedicar à especulação, às artes, às conquistas do espírito.


3. Grupos de teatro em meio à barbárie

Parte importante dos componentes dos nossos grupos faz teatro por duas razões básicas. A primeira, e certamente mais importante, é a subjetiva: o desejo de ser artista. Legítimo, mas com um dado que poucos examinam, porque não se fazem perguntas básicas como: por que não escolher outra profissão? Com tantas como que as que existem por aí e seguramente mais imediatamente úteis à sociedade, como bombeiro, lixeiro, pedreiro, alfabetizador, agricultor, médico, etc., etc., por que escolher justamente a profissão de artista? Uma das razões raramente invocadas para essa escolha é de ordem econômica num sentido que pouca gente reconhece: até descobrir as dificuldades que envolvem o exercício desta profissão, todos que a escolhem acreditam que o trabalho artístico é leve e, em caso de sucesso, que garante uma vida boa (dinheiro e todos os bens decorrentes do poder aquisitivo). Como essa crença é mais ou menos generalizada, não há razão para espanto quando nos olham com a ligeira (ou pesada) suspeita de que somos vagabundos. E, pensando bem, do ponto de vista de um pedreiro ou qualquer outro trabalhador que pega no pesado, há mesmo um quê de opção pela vagabundagem (sinônimo de trabalho leve) em nossa escolha. Se ela se exerce, são outros quinhentos.

Mas a outra razão para fazermos teatro de grupo pode estar na falta de escolha. Pode muito bem ser o caso de só estarmos neste barco porque ainda não conseguimos entrar no mercado de trabalho. Por falta de capacidade de investir ou de levantar patrocínio para produzirmos peças de sucesso ou, mais provável ainda, por falta de interesse do mercado (xoubiz e indústria cultural) em explorar a nossa força de trabalho que, como todos sabemos, é altamente qualificada (no sentido matemático: um ator não se forma em menos de onze anos de estudo, se computarmos o ensino fundamental). Num país como o Brasil, que reconhece oficialmente a existência de 70% de analfabetos funcionais na população adulta, onze anos de escolaridade quase configuram alto nível de especialização (e não estou falando em estudos superiores).

Feita a opção, ou dada a falta dela, fazemos teatro e ainda não nos colocamos perguntas elementares como, por exemplo, para quê ou para quem? A resposta costumeira “fazemos teatro para quem quiser nos assistir” é a melhor maneira de fugir do problema e ficar confortavelmente instalado na ideologia do mercado que é a dominante. Aliás, a nossa expectativa em relação ao modo como nossos trabalhos repercutirão na imprensa é o mais claro sintoma de que, no fundo, só queremos nos instalar no mercado, mesmo que de modo precário, com a grife de alternativos ou, na melhor das hipóteses, como atração “cult” e mesmo sabendo que, como observou o professor Marildo Menegat, os cadernos de cultura dos grandes jornais pelo mundo afora nada mais são que grandes empórios.

Em outras palavras, excluídos dos circuitos que constituem “o mercado”, a saber, o xoubiz (circuito comercial, que inclui também os espetáculos de música popular em espaços como o SESC ou Tom Brasil, ou erudita em teatros como o Cultura Artística) e a indústria cultural (rádio, televisão, jornais, editoras, gravadoras e estúdios de cinema e publicidade), produzimos uma modalidade de arte da qual a maior parte da sociedade nem sequer toma conhecimento. Parafraseando uma avaliação de Augusto Boal de fins dos anos 60, se encerrássemos definitivamente as nossas atividades de um dia para o outro, não se registraria um único gesto de protesto. Esta é a nossa maior precariedade: só existimos porque somos teimosos. Tal como está organizada, a sociedade não precisa de nós.

Antes de mais nada, porque, como vimos acima, o mercado como um todo, inclusive o cultural, está encolhendo por razões intrínsecas à lógica do capital (é o que explica fenômenos como o Cirque du Soleil recolhendo o que para seus gerentes e atravessadores são trocados por meio da renúncia fiscal num país que não tem dinheiro nem para manter escolas públicas decentes). Também já ficou dito que nós fazemos parte dos milhões de excluídos (e, quando muito, às vezes obtemos alguma inserção precária, nas mais horrendas condições de trabalho abstrato e sempre com prazo de validade limitadíssimo). Além disso, somos pouco atentos às verdadeiras funções que o teatro e a cultura de modo geral desempenham hoje.

Industrializada, a cultura passa a fazer parte do esforço da ampliação do capital . Esta é a sua função mais importante, mas ainda temos a ideológica, para usar um termo filosoficamente superado. Atualizando as análises de Adorno e Horkheimer no célebre ensaio sobre a indústria cultural, Marildo Menegat desenvolve o conceito de cultura da destruição para verificar o que permanece do diagnóstico dos filósofos frankfurtianos, o que se intensificou e o que é novo nestes tempos de semicultura industrializada.

Para que as funções da semicultura façam sentido, é preciso entender como se articulam os níveis de produção social da violência na era da barbárie. Assim, na economia, temos a indústria bélica como a locomotiva do processo de destruição das forças produtivas (crescimento de 60% em quatro anos!); na sociedade civil, temos a substituição traumática da política pela polícia; e os indivíduos não têm mais como representar a agressividade do desamparo (ninguém mais: incluídos e excluídos). Em poucas palavras, a violência se torna um hábito: basta observar a facilidade com que ela se manifesta no cotidiano das relações sociais, em que todos estão em guerra permanente contra todos. Podemos então falar tranquilamente em cultura da violência, pois esta é estetizada nos produtos da indústria cultural, funcionando como veículo estabilizador da estruturação subjetiva da barbárie. Como esta violência se deposita nos mínimos procedimentos técnicos (é o conteúdo deles), “forma-se um bunker em torno do indivíduo, para protegê-lo de qualquer experiência de vida complexa e do pensamento requerido para tal”. O desamparo se transforma em medo permanente de catástrofes econômicas e da implosão da sociedade; a sensação de estar sempre à beira de um estado de pânico é a forma sensível de como a insensibilidade se manifesta, ou seja, expressa o ponto de vista do indivíduo que já é incapaz de sentir, que dirá entender, o desabamento da esfera pública, o desaparecimento de qualquer perspectiva de vida associada. Tornado impotente, o indivíduo só sabe sentir medo. Produz-se um vazio que persegue as massas devidamente despolitizadas, no qual as identidades individuais foram reduzidas ao mínimo necessário para a realização de suas funções meramente econômicas. A semicultura produzida em escala industrial é esse bunker, um escudo invisível instalado no psiquismo dos indivíduos para protegê-los de toda informação ou experiência que possa perturbar o seu mergulho satisfeito no mundo da mercadoria, este mesmo que produz as catástrofes sociais do nosso tempo.

A produção da insensibilidade resulta da regra geral da produção que já foi demonstrada nas análises frankfurtianas dos artefatos da indústria cultural – todos procedem da mesma forma, não importa se música, romance, revista, filme, programa de rádio, televisão, game ou comunidade virtual: o artefato elimina do material qualquer expressividade e reafirma a certeza que o indivíduo deve ter sobre a melhor forma de se apartar do sensível. Esta insensibilidade é essencial à construção social da representação que legitimou a exclusão sensível das massas atuantes do espaço público.

Devidamente treinado em seu processo construção de uma insensibilidade à beira de um ataque de pânico, o indivíduo mergulhado na mercantilização total do mundo, submerso na sua semicultura (com a dieta diária de ficção, esporte, religião e sexo desenfreado), ataca tudo que o exclui: “uma cultura verdadeira é odiada pelas massas que, como párias, já se deram conta de que na sociedade burguesa a sua função é manter a sua identidade com as forças produtivas. Um comportamento mais requintado, que inclua um gosto pelo que já se chamou de alta cultura, e que carrega as pistas da possibilidade de um outro mundo, no qual essas mesmas massas seriam as maiores interessadas”, aparece como socialmente inaceitável, sendo rechaçado sempre de modo violento.

Como registrou Walter Benjamin nas suas teses sobre o conceito de história , nos tempos de expansão do capitalismo a função da arte e da cultura foi encobrir a presença da barbárie. Hoje é a de condicionar os indivíduos a viverem numa situação em que a barbárie é visível por todos os poros da sociedade e assim permitir que seu usuário se livre de quaisquer escrúpulos de algum compromisso civilizatório. Reality shows são verdadeiros processos de treinamento neste sentido.

Nas conclusões de seu livro, Menegat ainda trata de avisar que eficiência passou a designar o critério de funcionamento da atual sociedade da barbárie: o sistema jamais considerará eficiente constituir a vida social em torno de conceitos como direitos, dignidade, liberdade e democracia. E, no entanto, o que está em jogo é justamente o direito à vida não apenas dos chamados excluídos, mas até mesmo dos que se acreditam incluídos ou com chances de inclusão pela porta do trabalho abstrato.


4. Depoimentos

Com graus variados de consciência crítica das funções desempenhadas pela semicultura, os trabalhos que os grupos teatrais vêm desenvolvendo neste início de século, ao mesmo tempo em que se recusam a servir à barbárie (e por isso sua inserção no mercado cultural é muito mais difícil do que eles supõem), constituem depoimentos muito ruminados sobre os modos como se vive (?) em tempos de barbárie.

Sem a menor intenção de ser exaustiva, nem de usar qualquer critério a não ser o temático, nem mesmo o cronológico, passemos a uma breve enumeração do que temos visto nos últimos anos.

Como não poderia deixar de ser, a primeira peça, de referência obrigatória, é Babilônia, texto de Reinaldo Maia, direção de Marco Antonio Rodrigues, encenada pelo grupo Folias D’Arte em 2001. Neste espetáculo, uma reflexão estética em sentido muito radical sobre os mil sentidos da exclusão, acompanhamos as peripécias de um grupo de artistas de rua já vivendo na condição de mendigos, ou sem teto, que já se habituaram ao estado de barbárie e, por isso, mostram com muita naturalidade que suas regras são as mesmas do “mundo organizado”, isto é, a peça leva às últimas consequências a lógica da mercadoria operando sobre os destinos até mesmo dos inteiramente excluídos e ainda assim cultivando a expectativa de inserção no mercado de arte. Com o resultado analítico de que estes artistas não têm mais a menor chance de sair de sua condição.

A Companhia do Latão encenou no ano de 2000 a Comédia do trabalho (texto coletivo e direção de Sérgio de Carvalho e Márcio Marciano) que mostrava já estar disponível o conhecimento de que, após o processo da financeirização, a força de trabalho se transformou em mercadoria encalhada. E, com O auto dos bons tratos (2002), tratou de deixar claro que, na versão brasileira, o empenho civilizador sempre dependeu de práticas bárbaras – a escravidão e o genocídio. Faz parte do diferencial da Companhia do Latão (não por acaso uma das fundadoras do Arte contra a Barbárie) esta compreensão das marcas da barbárie desde sempre presentes em nossa sociabilidade cordial.

O Engenho Teatral produziu nos últimos anos duas peças complementares: Pequenas histórias que à história não contam e Em pedaços. A primeira é um amplo painel das dimensões da barbárie vista tanto do ângulo do intelectual que ainda se dispõe a compreendê-la quanto do ângulo dos que nela vivem mergulhados. Estes vão desde a trabalhadora informal que, por frequentar programas de auditório na televisão, acredita que um dia vai ser artista, até a mulher sem teto que teve a casa derrubada pelas motoniveladoras que abriam uma rua. A segunda, Em pedaços, obriga suas figuras a enfrentar a infernal dialética da dominação do mercado que ao mesmo tempo exclui e exige dos excluídos que permaneçam na luta por inclusão.

Mire veja, da Companhia do Feijão, superpõe narrativas que constroem uma imagem terrificante do modo como a metrópole produz a total desumanidade, em meio a ilusões, sonhos e alienações. Nonada, do mesmo grupo, ao mesmo tempo que formaliza a luta de classes tal como se processa historicamente no Brasil, mostra como, por consequência, a nossa classe dominante impede a manifestação dos dominados e lhes impõe a sua versão para a história deles.

Com o espetáculo Bastianas, a Companhia São Jorge, até porque desenvolveu sua pesquisa em instituições voltadas para excluídos de várias modalidades, além de recolocar a discussão sobre a fronteira entre público e espetáculo, organiza e articula as vozes (e seus conteúdos) dos massacrados pela história: a partir da decisão (política) de definir as narradoras das diversas histórias entrelaçadas (como na vida real) em função de orixás femininos do candomblé, o grupo configurou uma infinidade de experiências de excluídos, todas relevantes para o nosso tema. E para falar de um trabalho que dialoga muito diretamente com este, Hygiene, do Grupo XIX, mostra ao mesmo tempo um pequeno genocídio realizado em nome do desenvolvimento urbano (especulação imobiliária) e o discurso científico-ideológico que o acompanha.

Os que acompanham a cena teatral paulista já estarão se perguntando se não serão mencionados os trabalhos do Núcleo que dá nome a este item. Como sabe o seu público habitual, o Bartolomeu talvez esteja fazendo a pesquisa mais abrangente, pois tratou de inventar o teatro hip-hop. Este grupo virou no avesso o clássico de Calderón de la Barca, A vida é sonho, com Acordei que sonhava e criou fulminantes zonas autônomas temporárias com o projeto Urgência nas ruas. Agora, incorporando de maneira mais profunda o conjunto dos experimentos que dizem respeito ao hip-hop, seu espetáculo mais recente, Frátria, é um amplo inventário dos aspectos mais violentos e escandalosos da barbárie em que vivemos. Tudo isso sem perder de vista (nem deixar de mostrar) as mil maneiras como as referências daquilo que um dia foi chamado alta cultura continuam presentes por toda a parte.


5. Um horizonte possível

A enumeração acima teve apenas a função de mostrar como os grupos têm clara percepção dos avanços da barbárie e, desobedecendo aos mandamentos da semicultura dominante, tratam de apresentá-la em suas diversas manifestações. O que parece faltar à sua intervenção é uma certa consciência do significado de seus feitos estético-políticos e dos horizontes que eles podem abrir. Em parte, porque a luta feroz pela sobrevivência nem permite mesmo esses luxos.

Um pouco em função desta hipótese, no encontro de 2006 do Redemoinho sugerimos para essa parte indispensável de suas pesquisas uma fonte de inspiração que deriva dos trabalhos do professor Marildo Menegat. No final do livro O olho da barbárie, é apresentada a versão ítalo-gaúcha da história de uma utopia que, por incrível que pareça, está muito presente em muitos dos trabalhos, tanto os referidos aqui quanto os que ficaram de fora. Trata-se de uma história surgida no século XIII, na França, muito em função da escassez e da ameaça já representada pela desagregação do mundo medieval e pelos primórdios da era capitalista. É a história da Cocanha, onde “quem mais dorme mais ganha”. Um país imaginário, onde não havia a necessidade de trabalhar, nem comércio, nem proibições. (Sonhar com o ócio foi o que restou aos condenados aos martírios do trabalho abstrato).

Inspirado nas pesquisas de Hilário Franco Junior , Menegat conta o triste destino que teve no sul do Brasil este sonho que no século XIX serviu para os atravessadores da imigração atraírem camponeses italianos que acreditaram na propaganda de que aqui ficava a Cuccagna. Mas não foram só estes os portadores deste sonho entre nós.

Pela via da literatura de cordel, conta-nos o professor Hilário Franco Junior, também se criou aqui uma versão muito próxima de Cocanha. É São Saruê, como se pode ver no poema de Manuel Camilo dos Santos, editado em 1947: “Tudo lá é bom e fácil/ não precisa se comprar,/ não há fome e nem doença/ o povo vive a gozar/ tem tudo e não falta nada/ sem precisar trabalhar. [...] É um lugar magnífico/ onde eu passei muitos dias/ passando bem e gozando/ prazer, amor, simpatia,/ todo esse tempo ocupei-me/ em recitar poesias.”

Não por acaso, o Teatro de Narradores, em seu mais recente experimento, o cabaré desenvolvido a partir de uma leitura do Manifesto contra o trabalho, incluiu uma das versões mais sofisticadas da viagem a Cocanha. Trata-se do tango-habanera de Kurt Weill, com letra de Fernay, chamado Youkali. Composta para uma ópera (Maria Galante) em 1934 – no exílio, portanto – a canção inspirada nos reveses sofridos no Panamá por uma prostituta que sonha voltar para casa, é um pouco mais realista que as demais versões da lenda, pois termina referindo-se à necessidade de enfrentar a dura e hostil realidade. Qualquer semelhança com os nossos desafios não é mera coincidência.


6. De olho no inimigo


Ao tropeçar nos obstáculos criados pelas formas mais antigas da indústria cultural (rádio e cinema), Brecht formulou um desafio que até hoje permanece incompreendido por aqueles que fazem e refletem sobre o teatro. Observava ele que intelectuais e artistas, mesmo sob condições de trabalho ignominiosas, se acreditam livres das determinações às quais se submetem os demais trabalhadores porque entendem por liberdade a livre concorrência e a liberdade a que aspiram é a livre concorrência na venda das suas opiniões, conhecimentos e habilidades técnicas. Eles nem ao menos admitem ser chamados de trabalhadores intelectuais, pois se vêem como empreendedores, ou como pequenos burgueses. Dentre estes há ainda os que acreditam na liberdade de renunciar aos novos instrumentos de trabalho, mas esta é uma liberdade que se exerce fora do processo produtivo, pois não existem mais pensamento nem arte livres da influência das modernas tecnologias: pensamento e arte são mercadorias como um todo ou não existem.

Trocando em miúdos estas observações: o surgimento da indústria cultural transformou em coisa do passado a idéia de “arte” e pensamento não submetidos às determinações do mercado. Quem faz arte, não importa o que tenha a dizer com ela, só será consequente se lutar por seu direito de fazê-lo dentro do processo produtivo, hoje inteiramente controlado pela indústria cultural (inclusive o xoubiz).

Isto já era claro para Brecht em 1930, quando nem havia televisão, nem monopólio dos meios de comunicação, que pautam conteúdos e formas de ver e entender o mundo, sem o menor interesse pelos assuntos que mobilizam a nossa imaginação. Nos seus termos, é falsa (e politicamente explicável) a idéia de que só abrindo mão dos temas e formas que nos interessam, isto é, curvando-nos às determinações do capital, teremos acesso aos meios de produção e difusão da arte que fazemos. Se o capital e seus agentes, que já não produzem mais arte nem cultura, não têm condições de abrir espaço para nós, temos que lhes impor o “racionamento do trabalho”, para que todos possamos ter acesso aos modernos meios de produção. São eles os obstáculos que precisam ser removidos para pavimentarmos o caminho que nos levará a todos a Cocanha. E lá não precisaremos mais vender nem a nossa força de trabalho nem os nossos produtos: como disse o proponente das “zonas autônomas temporárias”, a remoção de todas as barreiras entre artistas e usuários da arte tenderá a ser uma condição na qual o artista não é um tipo especial de pessoa, mas toda pessoa é um tipo especial de artista.

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